segunda-feira, 23 de abril de 2012

Os Poetas Marginais do Recife (entrevista, pte.2)

(continuando o post da semana passada, vamos colocar aqui a segunda parte da entrevista concedida ao jornalista Urariano Mota, , em 2007) por alguns dos principais nomes da poesia recifense)

Valmir:
- Então eu vou assumir tudo o que faço, rapaz. Eu faço isso há 46 anos, entendeu? Então, são anos demais, e agora não são mais ânus, são 46 do caralho.
- E por que você não fez outra coisa?
- Eu tentei Geologia, fiz uns 3 períodos. Fiz Engenharia de Minas, mais uns 4 períodos. Depois fiz Direito, mas não foi tão direito, porque eu estava na esquerda, e depois percebi que a esquerda é o outro lado da direita, então eu hoje fujo de partido, eu hoje sou inteiro, mas sozinho. E não estou só, sabe? Porque eles também são meus pareceiros (aponta para os outros poetas na mesa), porque, porra, a gente tem divergência, sim, mas tem um objetivo único: cidadania, antes de partido, antes de tudo, cidadania plena! Puta que pariu!
- Lara, por que você inventou de cair na poesia?
- Foi um surto, em 1983. Foi um surto. Eu fui dominado por um setor do inconsciente coletivo que me arrastou. Então esse surto me fez abandonar o curso de Agronomia, e a partir daí eu passei a escrever poesia, literatura em geral, que eu também escrevo prosa, passei a trabalhar com a militância de esquerda, e a estação cultural. E fiquei trabalhando com isso até 1987.
- Mas esse surto coletivo era um surto de poesia?
- Coletivo, não, surto individual.
- Mas por que poesia, e não outra coisa?
- Isso é carma, não é, cara? Isso é carma. Isso aí vem antes, cara. Isso aí é carma, velho. Carma de Quixote. Carma de semilouco. Carma de Peter Pan. Isso é carma, isso vem antes. Eu venho desse carma já há varias encarnações. É o meu carma, que explode em 83. Na forma de um surto, não é? E a partir daí então, como eu disse, eu passo a fazer militância de esquerda e agitação cultural.... Com relação às drogas, eu usei pouco, na verdade. Usei pouco. Comparando com os grandes, eu usei pouco. Cocaína, inclusive, eu nunca usei. Usei maconha eventualmente, álcool, cogumelo e hoasca, foi basicamente isso.
- Não foi nada ....
- É, não foi tanta coisa assim... se você comparar com... bicho, esse pessoal é de tomar 5 ou 6 garrafas de vodca em uma noite.
- O quê?
- Cinco, seis garrafas. Valmir, Chico Espinhara, Erickson Luna, Jorge Lopes, Fred Caminha tomavam cinco, seis garrafas de vodca em uma noite. Eu tomo quatro, cinco doses de uísque e fico por ali... meu irmão, era muita droga. Então na verdade eu estava mais interessado no potencial crítico, cara. Eu estava mais interessado no potencial crítico da cultura alternativa, eu estava mais interessado nisso. No potencial crítico e na direção da transcendência ... (repete, como se murmurasse) potencial crítico e transcendência.
Aqui o poeta Lara arregala os olhos para uma distinção iluminante, que ele enxerga entre as trevas, como um felino quando arregala as pupilas no escuro:
- Então essa coisa da autodestruição enquanto bandeira existencial eu sempre fui contra. É uma divergência que eu tenho com o pessoal.
- Havia realmente essa bandeira de autodestruição?
- Havia. Erickson, principalmente. Negócio suicida. Era bandeira existencial. Era bandeira ideológica mesmo.
- Espinhara jogou-se no rio, é verdade isso?
- Sete vezes. Jogou-se.
- Mas ele sabia nadar, não é? Jogou-se 7 vezes e escapou.
- O rio estava seco. (Risos.) Ele ficou na lama, aquela coisa horrível.
- Absolutamente bêbado?
- Total. Ele ficava chapado e se jogava no mangue... Então tem esses aspectos: não é só poesia, é um monte de coisas. É cultura alternativa, é postura ideológica, é um monte de coisas.
- Massapê, por que você cismou de fazer poesia, e não fazer outra coisa?
- Mas eu faço outras coisas. Poesia pra mim é só um complemento. Sou percussionista, sou artista plástico também, e a poesia é só um complemento. Ela pra mim é mais uma etapa da musicalidade. Toco e, naturalmente, de vez em quando me aventuro a fazer algumas músicas.
- Você está fora dessa postura suicida, não é, Massapé?
- Eu quero viver um bom tempo ainda. Uns 10 anos. Não quero morrer agora não.
- Malungo, por que você caiu na poesia e não em outra vida?
- Minha avó já escrevia, escrevia, não, ela fazia versos cantados no interior. No cotidiano dela, ela já chamava meus tios rimando...Foi o seguinte, quando eu nasci, o meu pai botou no meu berço um rádio. Um rádio sempre ligado. Isso em 1969, quando eu nasci. Depois ele passou a comprar gibis. E começou a ler pra mim cordéis. Quando mudei de casa, e fiquei meio triste, numa depressão, deixei de ver minha namorada, meus amigos, saí de Torrões pra Maranguape 1, aí comecei a escrever umas coisas mais melosas, então as pessoas começaram a dar uma força, e eu parti para o lado crítico. Depois enveredei pelo surrealismo, pela psicodelia, muito inspirado também pelo tropicalismo....
Lara intervém:
- Psicodelia sem psicoativo.
-Malungo responde:
- A minha história é a seguinte: quando eu era pequeno, a minha mãe fazia uma mistura de colônia com liamba de caboclo, que tinha na minha casa. Minha mãe fazia a infusão da liamba com a colônia. Então durante a minha infância toda, isso era usado pra dor de cabeça.
- Valmir, a poesia de vocês, em primeiro lugar, não é valorizada como alta poesia.
- Hum.
- É como se fosse uma poesia menor.
- Hum!
- E poesia menor significa também poetas menores.
- Hum!!
- Hum... agora fale.
- É, Manuel Bandeira se considerava um poeta menor, e daí? Pode ser que tenha um cara de 2 metros e 10 que seja bom de basquete e péssimo em poesia, e daí? Ou ser um poeta menor por ter 1 metro e 70. Entendeu como é que é? Eu tenho 15 centímetros de pênis, então eu acho que é a média mundial, certo? Então eu não me sinto menor em porra nenhuma!
- Lara, e pra você, isso de fazer poesia menor e ser poeta menor?
- O grande problema, aqui em Pernambuco, com relação a isso é o cânone ocidental junto com o poder estabelecido. A gente tem aqui as oligarquias, a gente tem aqui um carma de usineiro, coronel, pesadíssimo. E você acha que isso não se refletiria no Departamento de Letras, por exemplo? Então a hegemonia do cânone ocidental, junto com o poder estabelecido, é que faz com que determinados estilos, determinados temas, sejam entendidos, vistos como menores. Não tem isso. O regional, o clássico, o alternativo contemporâneo, estão em pé de igualdade. Agora, quem está intoxicado, o intelectualóide que está intoxicado pelo padrão grego, que não consegue sair da área do cânone ocidental, seja por estreiteza perceptiva, seja por cumplicidade com o poder estabelecido, esse aí vai achar que é arte menor, que é poeta menor. Aí é que está o problema, está certo? (Aplausos na mesa.)

- Massapé, você acha que é um poeta menor, um poetinha?
- Eu acho que não. Acho que estou entre os maiores, porque Ariano Suassuna critica o rap, mas fez o Auto da Compadecida com um Cristo negro. Isso é rap. Desde quando ele vai ter moral pra falar mal do rap, dizer que o rap é lixo, se ele bota um Jesus preto? Jesus preto é rap. Então, Paulo Coelho não é um dos maiores do mundo? Se Paulo Coelho é, se Ariano é, eu também sou.

- Malungo, a sua poesia é pequenininha, menor?
- Eles podem me considerar um poeta pequeno, mas minha poesia é enorme. Ela abrange muitos aspectos da vida, ela é cheia de imagens. Se você pegar um poema meu, você pode fazer um videoclipe, um filme. Depois você vai confirmar. Tenho um poema que resume isso aqui, um poema pequeno, que diz assim: "Ligo o radinho de pilha e surgem figuras no meio da sala. Elas pulam, dançam, elas pulam e dançam se misturando para formar um verso. Um batuque azougado e eu na África caçando palavras com uma lança e um pensamento pendurado no inconsciente coletivo".

- Lara, como é que você analisa a poesia independente do Recife ser feita por pessoas pobres e monoglotas?
- Vê só, cara, a maioria dos poetas independentes são de origem pobre, são monoglotas, são intuitivos. E autodidatas. A gente sempre colocou isso como uma de nossas bandeiras contra o poder estabelecido, contra a academia, certo? Porque esse pessoal da academia, do poder estabelecido, eles só respeitam o poeta como escritor se for poliglota, se for pós-doutor, está certo?, se tiver mil cursos, está entendendo? Um autodidata, um intuitivo, eles não respeitam como poeta e escritor. Eles podem respeitar como músico. Mas como escritor eles não respeitam. Então a gente sempre colocou isso como uma de nossas bandeiras, sempre peitamos esses caras. Então eu também sou autodidata, intuitivo, eu fiz a metade de um curso superior, que foi Engenharia Agronômica, que abandonei em 83, por conta do surto, de que eu falei, mas eu li pra caramba, mesmo como monoglota eu li pra caramba. E refleti também. E observei também. E repassei isso em 7 livros, entre poesia e prosa. Então eu faço questão, eu bato pé, eu quero ser respeitado como poeta e escritor!, (bate na mesa) mesmo sendo de origem pobre, monoglota, autodidata, intuitivo, eu quero ser respeitado. (Bate na mesa.) Eles vão ter que me respeitar. Está certo?, porque foi a isso que eu dediquei boa parte da minha vida, muita leitura, muita reflexão, muito sacrifício pessoal também, está certo? Então este é o lance, a gente sempre colocou isso como uma de nossas bandeiras. É pau! Tem que respeitar e aceitar mesmo. Vão ter que nos engolir, está certo?

Valmir:
- Eu posso registrar um poema histórico? Por favor. "Monólogo de um cidadão da Mauricéia favelada. Fizeste brotar dentro de mim o amor, alimentando os meus sonhos em teus mamilos cancerosos. E te tornaste uma prostituta me embriagando e iludindo como um filho da puta. E o meu amor afogou-se em teus negros mangues, onde os sonhos mergulharam no Capibaribe. E teu porto tornou-se Amsterdam ao abrir tuas maurícias pernas aos aventureiros ávidos, fazendo de teus filhos sifilíticos bastardos. Princesa das águas sujas, das pontes e dos rios, foda-se, Recife! Não és digna da legião de famintos e esfarrapados".

Lara:
- Esse tipo de poesia a geração 65 não fazia não. (Valmir grita: - Nós somos os poetas abandonados!) Porque a gente ligou para o visceral, e o engajado da esquerda, mas não com panfletarismo, não calcado na ortodoxia marxista. A gente se propunha a ir além da ortodoxia marxista. Tinha anarquista, tinha ...esse lado visceral muito forte, de expor as tripas da realidade concreta, de fazer o combate ideológico, anticapitalista, como Massapé falou, a gente sempre teve isso, cara. Você não encontra isso na geração 65, cara. Você nem encontra isso no Modernismo. Nesse nível, a gente foi além do Modernismo. O próprio Mário de Andrade era um cara que não gostava do poema-piada.
É tarde da noite. O gravador pára de rodar, tem um problema mecânico, e parece ter mais ciência que o entrevistador. Então nós nos levantamos, por força desse problema mecânico.




A poesia marginal do Recife
Do sítio Interpoética


Desumano
Francisco Espinhara
Dá-me Deus um deus melhor
Não este deus azul
Este deus que as mãos cálidas clamam
Este deus senecto, rendez-vous.
Dá-me Deus um deus diferente, menor
Um deus com a cara suja de poeira
E que deite e durma e sonhe
E que se sente à mesa e coma
Os frutos que da terra hão de vir
Cantarole, lírico, uma velha canção
Depois desate a sorrir.
Dá-me Deus um deus humano
Como deus outro nenhum
Sem quaisquer obrigações divinas
E que ante a realidade das ruínas
Não se preste a milagres
Nem se preste a jejum
Dá-me Deus um deus comum


Ecce homo
Erickson Luna
Saiam da minha frente
matem-se
morram-se
deixem livre
o meu campo de visão
Me entristece conceber
a semelhança que nos une na semente
quem é que pode
ser feliz se vendo gente
Portanto
saiam da minha frente


Desencontro
Lara
era tão conotativo
mas tão conotativo
era tão hermético
mas tão hermético
era tão indireto
mas tão indireto
que ele disse
luz
e eu pensei
que ele havia dito
nada


Carroceiro transcendental
Malungo
Lá em Peixinhos, a arte mora na favela.
As bandas, o lixo do Beberibe:
É o groove suburbano!
Goiamuns plugados se esbarram nas vielas.
Todas as orelhas do mundo viradas para
Recife.
Só aqui, não se ouve o novo som
Pernambucano.

A luz do sol se reflete nas águas sujas do rio
(nos zincos dos barracões).
Urubus dão rasantes nas montanhas de lixo.
Nas carroças ferro velho, tralhas e
papelões,
Carne de rato; pés sujos nos telhados da
consciência.
Mocambos, almas encardidas
e balas perdidas sem clemência.

Geladeiras incandescentes iluminam a tua
cozinha.
Paredes transparentes revelam as terceiras
intenções.
Coloque o plugue e peça linha.
Viaje chutado, num burro sem rabo
rumo a outras dimensões.

Carne
Massapê
Corpo macio de nuvem
Suspensa no meu céu
Corpo de nuvem macia junto ao meu corpo de erosão
Teu corpo chove sobre o meu
Chuva de prazer
Nuvem é vida
Corpo faz nascer
Nuvem é carne de mulher



Marginal recife
Miró
Recife
Cidade das pontes
E das fontes da miséria
Poetas mendigando passes
Pra voltar pra casa
E sua poesia passando despercebida
Aliás,
Nem passa.


Milena
Cida Pedrosa
gosto quando milena fala
dos homens
que comeu durante a noite
é a única voz soante
nesta cantina de repartição
onde todos contam:
do filho drogado do preço do pão
do sapato carmim, exposto na vitrine
da rua sicrano de tal do bairro
de casa amarela
onde você pode comprar
e começar a pagar apenas em abril
sem a voz de milena
o café desce amargo


Medo do vôo
Ivan Marinho
Não precisas de tempo para ser livre.
Precisas é de coragem
para ser livre todo tempo.
O medo, tesoura de tuas asas,
tosou-te por inteiro,
e do chão só consegues ver
o que do chão permite-se:
Momentos adoecidos
pela espera do momento.
E na doença do momento esperado
não fazes mais do que esperar.
Por medo do vôo
não consegues voar


Sem título
Silvana Menezes
O poeta enxerga tanto
ao ponto de depositar
nas palavras
as balas
que de outra maneira
jogariam seus miolos
a dez metros de distância

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